quinta-feira, 21 de maio de 2009

Pré-estréia

Um comentário:

  1. I
    Ao olho mostra a integridade
    de uma coisa num bloco, um ovo.
    Numa só matéria, unitária,
    maciçamente ovo, num todo.
    Sem possuir um dentro e um fora,
    tal como as pedras, sem miolo:
    é só miolo: o dentro e o fora
    integralmente no contorno.
    No entanto, se ao olho se mostra
    unânime em si mesmo, um ovo,
    a mão que o sopesa descobre
    que nele há algo suspeitoso:
    que seu peso não é o das pedras,
    inanimado, frio, goro;
    que o seu é um peso morno, túmido,
    um peso que é vivo e não morto.
    II
    O ovo revela o acabamento
    a toda mão que o acaricia,
    daquelas coisas torneadas
    num trabalho de toda a vida.
    E que se encontra também noutras
    que entretanto mão não fabrica:
    nos corais, nos seixos rolados
    e em tantas coisas esculpidas
    cujas formas simples são obra
    de mil inacabáveis lixas
    usadas por mãos escultoras
    escondidas na água, na brisa.
    No entretanto, o ovo, e apesar
    de pura forma concluída,
    não se situa no final:
    está no ponto de partida.
    III
    A presença de qualquer ovo,
    até se a mão não lhe faz nada,
    possui o dom de provocar
    certa reserva em qualquer sala.
    O que é difícil de entender
    se se pensa na forma clara
    que tem um ovo, e na franqueza
    de sua parede caiada.
    A reserva que um ovo inspira
    é de espécie bastante rara:
    é a que se sente ante um revólver
    e não se sente ante uma bala.
    É a que se sente ante essas coisas
    que conservando outras guardadas
    ameaçam mais com disparar
    do que com a coisa que disparam.
    IV
    Na manipulação de um ovo
    um ritual sempre se observa:
    há um jeito recolhido e meio
    religioso em quem o leva.
    Se pode pretender que o jeito
    de quem qualquer ovo carrega
    vem da atenção normal de quem
    conduz uma coisa repleta.
    O ovo porém está fechado
    em sua arquitetura hermética
    e quem o carrega, sabendo-o,
    prossegue na atitude regra:
    procede ainda da maneira
    entre medrosa e circunspeta,
    quase beata, de quem tem
    nas mãos a chama de uma vela.

    A poesia acima foi extraída do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994, pág. 302.

    ResponderExcluir