sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Uma reação ao disfarce do ovo - por Livia Almendary

Olhar, apalpar com olhos nômades
ou
Uma reação ao disfarce do ovo


por Livia Almendary

O olhar sempre foi considerado algo perigoso. Orfeu transformou sua amada em estátua com um olhar impaciente; Narciso apaixonou-se por seu próprio reflexo na água e terminou afogado em si mesmo; Édipo furou os olhos porque não suportou ver que tinha matado o pai e cometido incesto com a mãe; alguns índios recusaram olhar-se no espelho pois sabiam que a imagem refletida era sua própria alma, e que a perderiam se nela depositassem seu olhar .
“Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido”, vai dizer também a(o) narrador(a) de “O ovo e galinha”, de Clarice Lispector . Estabelecer limites, classificar, definir, delimitar, fixar: ver é dar forma ao pensamento e esgotar, de alguma maneira, o instante fugaz em que algo é livre para ser qualquer coisa, antes de ser capturado pela linguagem, pelo discurso, pela autoridade pesada daquilo que diz “isso é...”. Ver, portanto, pode ser de fato perigoso, e o “ovo é coisa que precisa tomar cuidado”, já avisa o(a) personagem do conto nas primeiras páginas.

Contra a adaptação, a reação
Os primeiros críticos literários que escreveram sobre Clarice Lispector notaram que sua prática discursiva retirava o sentido comum das palavras para moldá-las às suas necessidades de expressão. A autora não utilizava a linguagem como um dispositivo para ordenar o mundo, e sim como elemento de transgressão, de potência, num “processo de violação da norma discursiva para arrancar da linguagem pura uma nova energia, indomável e incomum” . Dito de outra forma, Clarice tentava a façanha de escrever sem esgotar ou limitar em apenas uma as “mil faces secretas sob a face neutra ” de uma palavra; escrevia para multiplicar os sentidos do mundo, e não para reduzi-los. “Por isso a galinha é o disfarce do ovo. (...) Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam o ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida”, continua a(o) narrador(a).
Levar Clarice dos livros ao teatro não poderia, pois, ser de outra forma senão como uma “reação”. A adaptação – fixação, explicação, tradução – seria trair o próprio objeto de partida, seria como “chamar de branco aquilo que é branco” e, justamente por isso, “destruir a humanidade”. O(a) mesma(o) personagem também nos ensina a “lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer 'um rosto bonito', mas quem disser 'o rosto' morre; por ter esgotado o assunto”. Reagir, pois, para não esgotar.

Contra a colonização, o nomadismo
Disfarçadas de atrizes, as atrizes do Coletivo Teatro Dodecafônico ocupam temporariamente a Casa de Dona Yayá, um sítio histórico no bairro do Bexiga que já foi (e por isso ainda é) uma chácara, uma casa, um espaço cultural para onde elas levaram a Clarice, o ovo, o livro, e o teatro. Não o “teatro de palco”, onde espectador e espetáculo têm lugar definido, mas um teatro que circula, que se desloca, que ocupa e reocupa um território em suas múltiplas possibilidades. Um jardim, uma mesa, um banheiro, uma escada: qualquer lugar é lugar para o teatro dodecafônico de Clarice.
Ocupar um espaço é estabelecer-se num território, estar presente e ativo no mundo. Mas ocupar uma casa antiga para transformá-la em teatro é, também, sair de um território (o palco tradicional), (re)transformar sua função e seu sentido. Territorializar, nesse caso, é desterritorializar o próprio teatro, refuncionalizá-lo. Do espaço fechado, íntimo, escuro, com lugares marcados e protocolo conhecido, foi-se para o espaço aberto, público, livre, nômade.
Nomadismo e liberdade, que fique claro, são aqui entendidos não como renúncia a estar presente e atuante num determinado espaço, e sim como forma de permanecer no (teatro do) mundo sem deixar-se colonizar, sem deixar-se capturar pela norma que, com o tempo, definiu “o teatro”, “o corpo”, “a beleza”, “a família”, “a vida” (para ficar apenas em alguns dos temas abordados na peça do Coletivo, pois a lista é longa até o infinito). Não se trata, portanto, de renunciar a um território ou ao compromisso com o espaço onde se vive (nem ao teatro, à família, à beleza, à vida...), é transitar por esses espaços com olhos nômades, não estáveis, não colonizadores – e por isso transformadores.

Contra a verdade, o disfarce
Em tempos ditos “liberais”, paradoxalmente cresce um controle pulverizado em discursos normalizadores que soam inofensivos, como “cuide de sua saúde e viva mais”, “faça exercícios”, “mantenha sua casa livre de micróbios”, “siga essas dicas e fique com a pele linda ”,“seja alguém na vida (e não ator de teatro)”. Sorria, você pode estar de fato sendo filmado. Também dizem que comer muito ovo faz mal, dá enjoo, pesa, faz subir o colesterol. No mundo de Clarice, e do teatro (dodecafônico), o perigo em relação ao ovo “é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (…) Mas quem lutasse para torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos põe, portanto, em perigo”. Não à toa, e não por acaso, é que “os iniciados disfarçam o ovo”.

______________________________________________

Marilena Chaui, “Janela da alma, espelho do mundo”.
Clarice Lispector, “O ovo e a galinha” (em Felicidade Clandestina).
Raúl Antelo, em prefácio para a edição argentina do livro “O lustre”.
Carlos Drummond de Andrade, “Procura da poesia” (em antologia poética).
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia. Volume 1, capítulo 1.

Livia Almendary é graduada em História pela Universidade de São Paulo e mestranda em Literatura Latino-americana na Universidade de Buenos Aires.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009