sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Uma reação à peça “O disfarce do ovo: uma reação à Clarice Lispector”

Na peça “O disfarce do ovo: uma reação à Clarice Lispector” é quase tudo no feminino. Desde a escolha por uma encenação que abre polissemicamente questões, aos fragmentos do universo feminino que se apresentam e vão compondo a sinfonia de um nascimento. Nascimento da menina na relação com a mãe/mulher ou nascimento de uma mãe ao conceber uma filha? Menina/mulher, mãe/filha, eu/outra, ovo/galinha, são pares de opostos na constituição do EU... no feminino. Menina, filha/ mulher, mãe se alternam nas falas e nos corpos que se descobrem em cena.

Em muitos momentos, o termo ‘esquisita’ aparece nas falas das personagens. Expressão do estranhamento do próprio corpo que cresce feminino, do estranhamento do corpo da mulher, do corpo da outra, das intensidades que se apresentam a partir dele, provocando amor, ódio, perguntas, estranheza, esquisitice.

Realidade/corpo que parece estrangeiro, ou mesmo uma parte do próprio eu... Eu? Corpo de menina frente ao corpo da mulher, corpo de mãe, corpo de filha, sentimento de estranheza. “Esquisita”. Clarice Lispector se faz presente por meio de frases projetadas junto aos corpos que se movimentam tentando se descobrir.

“Quero ter filhAS”, diz a personagem, “filhas meninAS”, enfatiza. Mãe que cuida, mãe que mata, mãe que escolhe, mãe prenhe de ambivalência. “Ser mãe, você quer ser mãe?” Ser mãe já deve ser difícil, o que dirá de ser mãe de um meninO? “Jogo no lixo!”, diz a personagem, fazendo pensar/lembrar na violência possível do amor materno e que este nunca está isento de ambivalência e de conflitos. E que a fantasia de tornar-se mãe de uma menina, onde há uma referência especular, pode assustar menos do que a fantasia de tornar-se mãe de um diferente, de um menino.[1] E que, de qualquer forma, tornar-se mãe e ser filha é um percurso cheio de dores e delícias.

Já de saída, uma das atrizes pede para cada um se posicionar: na fila da esquerda, aquelas que são mulheres, na da direita aqueles que são homens; a seguir, na do meio aqueles que têm nome composto como ela: Ana Lucia, Luis Antonio, José Otávio, Helena Maria... A atriz pergunta ao assistir as pessoas se deslocarem para a fila do meio: “você tem nome composto?”, uma mulher responde: “mais ou menos...”, e ela responde: “o importante é que você escolheu o seu lugar”. A peça nos convoca o tempo todo a escolhermos o nosso lugar. Não há lugar fixo, pré-estabelecido, designado, pode-se escolher.

Levadas de cá pra lá, as pessoas se indagam sobre o que vem a seguir. O deslocamento no espaço atiça a curiosidade e acorda o olhar para cada nova cena, criando aberturas para novos pontos de vista. O público ocupa lugares e cada um toma seu lugar e participa, se quiser, respondendo às perguntas que são lançadas em tom de enigma lúdico a ser decifrado por cada um: “Você quer ser mãe dele?” “Você gosta de ser você?” Questões sobre a nossa origem, identidade, sexo e escolhas circulam o tempo todo dos modos mais variados.

Uma cena se inicia com as atrizes olhando para o público em silêncio, com um olhar curioso, reflexivo e que nos põe a indagar, numa posição ativa, sobre o que acontece?

Várias cenas se sucedem como desdobramentos, facetas e evocações do universo feminino que se articulam pela via da ressonância, abrindo novas e múltiplas produções de sentido. Nada se conclui nem se esgota.

São várias as possibilidades de sentido que um ovo oferece, exploradas com humor ao longo da peça. É possível fritar, “com perfeição”, um ovo. Também namorá-lo, botá-lo, comê-lo, ser envenenado por ele. Qual é o enigma do ovo? Está ligado ao enigma sobre o que é a mulher?

Ao redor de uma mesa de cozinha, conselhos matrimoniais e de beleza são dados. Em outra cena, a destreza culinária é testada e receitas são cantadas em verso e prosa.

Mais adiante, as atrizes/personagens/filhas repetem mandatos maternos enquanto repetem, quase num automatismo, os gestos de limpeza de uma dona-de-casa. Uma fala engole a outra, falas engolidoras e indiferenciadoras. Mas a cena é cômica e provoca muitas risadas da platéia. Através do humor, aplaca-se a força determinadora do superego materno e toma-se distância.

O tempo todo é possível perceber a implicação e inclusão das atrizes e do Coletivo Teatro Dodecafônico na criação, produção e nas articulações propostas na peça. Daí, muitas vezes, ser difícil referir-me somente às personagens, porque me parece que são as personagens/atrizes/mulheres/coletivo que se expressam em reação aos dois contos, que escolheram encenar, de Clarice Lispector.

Helena M F M Albuquerque

Psicanalista

Mestre em Psicologia pela USP



[1] O que também coloca em questão a idéia freudiana de que ser mãe de menino seria mais gratificante e isento de ambivalência para uma mulher. Pode-se pensar que incide sobre essa afirmação o contexto histórico e à posição social da mulher na época, o que o próprio Freud não deixa de reconhecer em seu texto “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” de 1908.

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